terça-feira, 30 de outubro de 2012

As cotas e o desafio da permanência Claudia Mayorga* e Shirley A. Miranda** No último dia 15 de outubro, foi publicada no Diário Oficial da União a regulamentação da Lei de Cotas que determina a reserva de, no mínimo, 50% das vagas em instituições federais vinculadas ao Ministério da Educação para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas incluindo o critério de renda. Determina ainda que, dentro desse percentual, se observe a presença de pretos, pardos e indígenas na proporção auferida pelo censo demográfico em cada estado. Tal conquista deve ser intensamente celebrada, pois é fruto de longa e árdua luta do movimento negro e de diversos grupos sociais que há anos vêm reivindicando e propondo ações contundentes em prol da democratização do acesso e permanência no ensino superior e que contribuíram para delinear as políticas de ação afirmativa no Brasil que, como sabemos, objetivam o reconhecimento e correção das desigualdades historicamente atribuídas e impostas a determinados grupos sociais. Avaliamos que essa reivindicação e essa conquista, legítimas e necessárias, contribuirão com a promoção da diversidade cultural e da justiça social em nosso país. O próximo passo será enfrentar os desafios colocados pela abertura da universidade a segmentos sub-representados no ensino superior. Um deles, que tomamos como objeto de reflexão neste texto, refere-se à garantia de permanência bem-sucedida e com qualidade dos estudantes cotistas no ensino superior. Uma das primeiras preocupações que emerge quando se pensa em uma política de cotas diz respeito às condições materiais de permanência dos cotistas na universidade. É inegável que a ampliação de recursos financeiros aos cotistas por meio de bolsas é fundamental para que sustentem sua presença e participação nos cursos, sem terem que se dividir entre trabalho e estudo, o que pode trazer muitos obstáculos à sua formação. O mesmo se pode dizer em relação a atividades de tutoria e acompanhamento pedagógico. Contudo, devem-se associar a essas iniciativas alguns outros aspectos. É recorrente encontrar nas instituições universitárias uma concepção de permanência fundamentada em perspectiva estritamente assistencialista associada à ideia de carência (econômica, cultural, cognitiva, moral etc.). Essa abordagem desconhece a experiência dos cotistas no que se refere à sua formação e às soluções que produzem, não só diante dos desafios da sobrevivência, mas também na construção de estratégias para prosseguimento de estudos. As formas utilizadas para conciliar trabalho e estudo ao longo da trajetória escolar, o investimento na formação universitária como perspectiva de ascensão social em longo prazo e as redes de solidariedade ­construídas para sustentação desse investimento ­resultam em saberes que uma perspectiva assistencialista tende a desconhecer porque restringe sua interpretação à lógica da falta, da carência e da suplementação. Encontramos na universidade um profundo desconhecimento da realidade desses sujeitos e que recorrentemente reverbera em expectativas negativas acerca do seu desempenho e reduzem as explicações sobre as dificuldades da permanência às características e carências individuais dos próprios estudantes. Entendemos que uma política de ação afirmativa de mérito deve contemplar ações e proposições pautadas pela lógica do acesso a direitos como condição para a permanência bem-sucedida de estudantes negros, indígenas e de classes populares na universidade pública. A mudança de posição da universidade em relação aos estudantes desse grupo que terá acesso pela medida de cotas trará por consequência modificações estruturais, alterações no funcionamento cotidiano da instituição e em sua burocracia. As adequações ao projeto de universidade em construção exige inovação, criatividade e ousadia para a criação de propostas que contemplem a especificidade dos cotistas sem marginalizá-los pelo rótulo da “carência”. Além disso, deve possibilitar o debate público e a politização dessa experiência, para que a política de permanência não se transforme em um paliativo das desigualdades, mas em algo que, de fato, envolva toda a comunidade acadêmica, possibilitando que ela se implique nessa transformação. Uma política de ação afirmativa de permanência deve, sim, focar e cuidar das necessidades materiais para a inserção acadêmica dos estudantes negros, indígenas e pobres na universidade, por meio de bolsas de permanência, acesso facilitado ao restaurante universitário, auxílio a transporte, ampliação do acervo bibliográfico, entre outras medidas. Elas são importantes para promover a circulação e estabilidade desses estudantes nos espaços da universidade contribuindo para seu processo de formação. Também devem ser adotados ações de acompanhamento do acesso dos cotistas aos projetos de pesquisa, extensão e ensino e mecanismos de participação em congressos e demais espaços de debate acadêmico. Mas, sobretudo, essa política deve contribuir para que a comunidade acadêmica possa analisar de forma crítica as dinâmicas da exclusão social na sociedade brasileira e na universidade para, a partir daí, construir novos posicionamentos. Uma política que pretenda promover transformação das desigualdades sociais e raciais na sociedade brasileira não pode simplesmente adaptar os sujeitos ou buscar amenizar os incômodos que possam promover no contexto da universidade através de suas histórias e trajetórias de vida distintas, suas referências culturais outras e seus corpos “irreverentes” à ordem social que está dada. A presença desses sujeitos deve contribuir com a pluralização da universidade e com a repactuação sobre questões fundamentais para essa instituição. Reconhecer essas vozes permite ampliar o horizonte democrático que pretende ser o resultado da luta pela igualdade e pelo reconhecimento da diferença. *Professora do Departamento de Psicologia da Fafich e coordenadora do Núcleo Conexões de Saberes da UFMG ** Professora do Departamento de Administração Escolar da Faculdade de Educação, integrante do Programa Ações Afirmativas na UFMG e coordenadora do colegiado do curso de Formação Intercultural de Educadores Indígenas